sexta-feira, 8 de outubro de 2010

LAICIDADE DO ESTADO, POLÍTICA E RELIGIÃO

Na sua formação, o Estado brasileiro nada tinha de laico. A Constituição do Império (1824) foi promulgada por Pedro I "em nome da Santíssima Trindade". O catolicismo era religião oficial e dominante. As outras religiões, quando toleradas, eram proibidas de promoverem cultos públicos, apenas reuniões em lugares fechados, sem a forma exterior de templo. As práticas religiosas de origem africana eram proibidas, consideradas nada mais do que um caso de polícia, como até há pouco tempo. O clero católico recebia salários do governo, como se fosse formado de funcionários públicos. O Código Penal proibia a divulgação de doutrinas contrárias às "verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma". Os professores das instituições públicas eram obrigados a jurarem fidelidade à religião oficial, que fazia parte do currículo das escolas públicas primárias e secundárias. Só os filhos de casamentos realizados na Igreja Católica eram legítimos, todos os outros eram "filhos naturais". Nos cemitérios públicos, só os católicos podiam ser enterrados. Os outros tinham de se fingir católicos ou procurarem cemitérios particulares, como o "dos ingleses" (evangélicos), no Rio de Janeiro.
A situação de hoje é bem diferente daquela, mas ainda está longe de caracterizar um Estado laico. As sociedades religiosas não pagam impostos (renda, IPTU, ISS, etc) e recebem subsídios financeiros para suas instituições de ensino e assistência social. O ensino religioso faz parte do currículo das escolas públicas, que privilegia o Cristianismo e discrimina outras religiões, assim como discrimina todos os não crentes. Em alguns estados, os professores de ensino religioso são funcionários públicos e recebem salários, configurando apoio financeiro do Estado a sociedades religiosas, que, aliás, são as credenciadoras do magistério dessa disciplina. Certas sociedades religiosas exercem pressão sobre o Congresso Nacional, dificultando a promulgação de leis no que respeita à pesquisa científica, aos direitos sexuais e reprodutivos. A chantagem religiosa não é incomum nessa área, como a ameaça de excomunhão. Há símbolos religiosos nas repartições públicas, inclusive nos tribunais.
A expressão Estado laico não consta da Constituição de 1988, mas parte de seu conteúdo pode ser encontrado nela: entre as interdições à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, está a de:
"Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-las, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."
Assim formulado, o texto constitucional permite associações entre o Estado e instituições religiosas que, se não interdita consciência e crença, privilegia uns credos em detrimento de outros, e, mais ainda, privilegia os crentes diante dos não crentes em matéria religiosa.
O Estado brasileiro tem tratados com o Vaticano, ente estatal da Igreja Católica, em matérias como a capelânia militar, além de concordatas implícitas, como a que mantém o laudêmio. Este é um resquício do direito medieval, que persiste até hoje no Brasil. Ele consiste numa taxa que o proprietário de um imóvel tem de pagar anualmente (foro). Além disso, cada vez que o imóvel sujeito ao laudêmio é vendido, tem-se de pagar uma taxa calculada à base de 2,5% a 5,5% do valor da transação - chega a ser maior do que o imposto de transmissão devido à Prefeitura Municipal. Além da família imperial, dioceses da Igreja Católica e irmandades religiosas beneficiam-se do laudêmio nas áreas centrais das cidades mais antigas do país. Se as Igrejas Evangélicas não recebem recursos do laudêmio, beneficiam-se de outros privilégios, como as concessões de emissoras de rádio e televisão, além de acesso a recursos públicos para atividades assistenciais e educacionais. O art. 150 da Constituição de 1988 no inciso VI, alínea “c” proíbe a criação de impostos federais, estaduais e municipais sobre "templos de qualquer culto".
Durante a preparação da visita do papa Bento XVI, em maio de 2007, o Vaticano pressionou o governo brasileiro a assinar um pacto para consolidar os privilégios da Igreja Católica, assim como para estabelecer outros, como o livre acesso às terras indígenas, para ação religiosa. Naquela ocasião, denúncias de entidades laicas e matérias na imprensa, de que um acordo secreto estava sendo elaborado, frustraram a iniciativa, que, aliás, recebeu a rejeição do Presidente da República, que afirmou ser "o Brasil um Estado laico". No entanto, os entendimentos continuaram, secretamente, e culminaram na assinatura da Concordata, em Roma, em novembro de 2008. O texto encontra-se no Congresso Nacional para ser homologado ou rejeitado.
Nesse processo de construção do Estado laico, há avanços e recuos. Aqui vão dois exemplos. Primeiro, dois exemplos de avanço seguido de recuo. A Constituição Republicana de 1891 determinava que fosse laico o ensino ministrado nas escolas públicas, mas a aliança do Governo Vargas com a Igreja Católica fez com que o ensino religioso voltasse às escolas públicas, mediante decreto, em 1931, e por determinação constitucional, em 1934. Desde então, todas as constituições prevêem o ensino religioso nas escolas públicas, um retrocesso. Vamos a outro. As duas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961 e 1996) foram promulgadas com uma cláusula que proibia o uso de recursos públicos para o ensino religioso nas escolas públicas - um avanço na direção da laicidade do Estado. Mas, essa cláusula foi retirada das duas leis, pelo mesmo Congresso que as promulgara, por causa da pressão da Igreja Católica - outro recuo na laicidade. Agora, um exemplo de avanço da laicidade do Estado, este bem consolidado. Apesar da longa e sistemática oposição do clero da Igreja Católica contra a possibilidade legal de dissolução da sociedade conjugal, o divórcio foi instituído, por lei do Congresso Nacional, em 1977. Neste caso, a moral coletiva foi retirada da tutela religiosa, portanto, houve um avanço no processo de laicização do Estado que refletiu a secularização da sociedade.

Gostaria de relembrar aos (as) leitores (as) que na vida pública, encontramos muitos exemplos de religiosos que unificaram a espiritualidade e a política. Homens que vivenciaram as experiências místicas sem perder de vista o compromisso com o mundo mundano e também enriqueceram o mundo dos homens com os ensinamentos da transcendência.

No Brasil, um dos exemplos é de Dom Hélder Câmara, que colocou os ensinamentos da Igreja a serviço da construção do bem comum. Sacerdote, não perdeu a dimensão do homem público. Da mesma maneira, o pastor protestante estadunidense Martin Luther King orientou sua liderança espiritual na luta contra a discriminação. Mahatma Gandhi é outro grande exemplo de encontro das duas dimensões do homem na vida pública. Para ele, quem dizia que política e religião não têm relação entre si não entendia de nenhuma das duas coisas.

Dom Hélder assim se pronunciava quando questionado sobre a sua atuação política e religiosa: "Quando eu falo da pobreza todos me chamam de cristão, mas quando eu falo da causas da pobreza, me chamam de comunista. Quando eu falo que os ricos devem ajudar os pobres, me chamam de santo. Mas quando eu falo que os pobres têm que lutar pelos seus direitos, me chamam de subversivo”.
Frases como: "O Neoliberalismo é um pecado social porque rompe a harmonia entre as comunidades de uma nação e de um continente inteiro". "O Neoliberalismo baseia-se numa concepção economicista do homem, valorizando o lucro e as leis do mercado em detrimento da dignidade e do respeito à pessoa e ao povo". "A Globalização é dirigida apenas por leis do mercado aplicada segundo as conveniências dos mais poderosos..." foram pronunciadas pelo Papa João Paulo II.
A Universidade Metodista de São Paulo mantém um curso de Especialização em Ciências da Religião, onde figura a disciplina Política e Religião que tem como ementa “Estudar a interligação entre as esferas política e religiosa, à luz da sociologia, antropologia, filosofia, teoria e ciência política, enfatizando-se as relações de poder e dominação, de conflitos e compromissos, dos grupos sociais, instituições e movimentos religiosos, em suas relações e distribuição de poder, tanto interna como externamente”.
O debate é profícuo neste sentido. Por último, deixo o título de um livro do escritor Paul Freston que pode contribuir muito para entender esta relação, RELIGIÃO E POLÍTICA SIM, IGREJAS E ESTADO, NÃO.

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